Ano novo, e a volta da desaparecida aqui. Para começar as postagens e o ano aqui no blog, decidi iniciar com a volta do projetinho Segunda Conto, além de tentar postar contos nas segundas, ao menos em duas a três segundas-ferias do mês, todo começo de mês receberemos a brilhante visita de nosso amigo, Neil Gaiman com os seus contos maravilhosos. Vamos nessa?
Conto de janeiro
VAPT!
— É sempre assim?
O jovem parecia desorientado. Olhava ao redor pelo cômodo, sem foco.
Aquilo o acabaria matando, se não tomasse cuidado.
Doze deu tapinhas em seu ombro.
— Não. Nem sempre. Se tivermos algum problema, ele virá dali, no alto.
Ele apontou para uma porta de sótão, no teto. A porta estava mal encaixada no
batente, fechada feito um olho que espera na escuridão atrás dela.
O jovem assentiu. Então, perguntou:
— Quanto tempo temos?
— Juntos? Talvez mais uns dez minutos.
— Teve uma coisa que eu perguntei várias vezes na Base, mas ninguém
respondia. Disseram que eu veria com meus próprios olhos. Quem são eles?
Doze não respondeu. Algo havia mudado, muito discretamente, na escuridão
do sótão acima deles. Trouxe o dedo até os lábios, e então ergueu a arma,
indicando ao jovem que fizesse o mesmo.
Eles despencaram do buraco do sótão: cinzentos como tijolos e verdes como
bolor, dentes afiados e ágeis, tão ágeis. O jovem ainda estava procurando o
gatilho quando Doze começou a atirar; ele os acertou, todos os cinco, antes que o
jovem conseguisse dar seu primeiro disparo.
Olhou para a esquerda. O jovem tremia.
— Aí está — disse.
— Acho que a pergunta é: o que são eles?
— Quem ou o quê. Dá no mesmo. São o inimigo. Escorregando pelos
contornos do tempo. Agora, na transferência, vão sair em grande número.
Desceram juntos as escadas. Estavam numa pequena casa de subúrbio. Havia
uma mulher e um homem sentados à mesa da cozinha, sobre a qual repousava
uma garrafa de champanhe. Não pareciam reparar nos dois homens
uniformizados que atravessaram o cômodo. A mulher estava servindo a bebida.
O uniforme do jovem era bem passado, azul-escuro, e parecia nunca ter sido
usado. A ampulheta anual ficava presa ao cinto, cheia de areia clara. O uniforme
de Doze estava desgastado e desbotado, numa coloração azul-cinzenta,
remendado onde havia sido cortado, rasgado ou queimado. Chegaram à porta da
cozinha e...
Vapt!
Estavam do lado de fora, numa floresta, em algum lugar muito frio.
— ABAIXE-SE! — bradou Doze.
Algo afiado passou por cima de suas cabeças e se chocou contra uma árvore
atrás deles.
— Você não disse que, às vezes, era diferente? — ironizou o jovem.
Doze deu de ombros.
— De onde estão vindo?
— Do tempo — respondeu Doze. — Estão se escondendo atrás dos segundos,
tentando entrar.
Na floresta perto deles, alguma coisa fez umpf, e um enorme pinheiro
começou a arder com uma chama verde feito o cobre.
— Onde estão?
— Acima de nós outra vez. Costumam ficar acima ou abaixo da gente.
Desceram como faíscas de um sinalizador, lindas e brancas e possivelmente
um pouco perigosas.
O jovem estava pegando o jeito da coisa. Dessa vez, os dois atiraram juntos.
— Eles o informaram dos detalhes da missão? — indagou Doze.
Quando aterrissaram, as faíscas pareciam bem menos lindas e muito mais
perigosas.
— Na verdade, não. Só disseram que seria por um ano.
Doze recarregou rapidamente a arma. Tinha cabelos grisalhos e cicatrizes. O
jovem mal parecia ter idade suficiente para pegar uma arma.
— Explicaram a você que um ano seria uma vida inteira?
O jovem balançou a cabeça em negativa. Doze se lembrou de quando era
assim tão novo, de uniforme limpo e intacto. Será que um dia ele fora tão
inocente? De expressão tão ingênua?
Cuidou de cinco dos demônios faiscantes. O jovem deu cabo dos três que
restavam.
— Então é um ano de combate.
— Segundo a segundo — disse Doze.
E...
Vapt!
As ondas quebravam na praia. Estava quente, janeiro no hemisfério sul. Mas
ainda era noite. Acima deles, fogos de artifício nos céus, imperturbáveis. Doze
conferiu a ampulheta anual: restavam apenas alguns grãos. Estava quase
terminado.
Correu os olhos atentos pela praia, as ondas, as rochas.
— Não estou vendo — declarou.
— Eu estou — disse o jovem.
Enquanto ele apontava, algo imenso saiu do mar, maior do que a imaginação
era capaz de conceber, uma vastidão espessa e malévola, cheia de tentáculos e
garras, e rugia conforme se erguia.
Doze apanhou a bazuca que trazia nas costas e apoiou-a sobre o ombro.
Disparou e observou as chamas florescerem do corpo da criatura.
— O maior que já vi — disse. — Talvez tenham guardado o melhor para o
final.
— Ei — retrucou o jovem —, estou apenas começando.
Então veio na direção deles, as garras de crustáceo se agitando e pinçando,
tentáculos açoitando, a grande boca abrindo e fechando ao léu. Saíram correndo
em direção ao alto da ribanceira de areia.
O jovem era mais rápido que Doze: era novo, mas às vezes isso é uma
vantagem. O quadril de Doze doía, e ele tropeçou. Seu último grão de areia
passava pela ampulheta anual quando algo — um tentáculo, pensou ele —
envolveu sua perna, e ele caiu.
Olhou para cima.
O jovem estava de pé na ribanceira, com os pés bem firmes, conforme
ensinavam no treinamento, empunhando uma bazuca de modelo desconhecido
— algo criado depois de sua época de treino, Doze supôs. Começou a se despedir
mentalmente enquanto era arrastado de volta para a praia, areia arranhando o
rosto, e, então, uma explosão abafada, e o tentáculo foi arrancado da sua perna
com um puxão quando a criatura foi lançada de volta ao mar.
Ele caía pelo ar quando o último grão desceu e a Meia-Noite o levou.
Doze abriu os olhos no lugar para onde vão os anos passados. Catorze o ajudou
a descer do palco.
— Como foi? — perguntou Mil Novecentos e Catorze.
Ela usava uma saia branca que chegava ao chão e longas luvas brancas.
— Estão ficando mais perigosos a cada ano — disse Dois Mil e Doze. — Os
segundos, e aquilo que espreita por trás deles. Mas gostei do novato, acho que ele
vai dar conta.
* Esse conto foi retirado do livro, Alerta de Risco do autor Neil Gaiman publicado no Brasil no ano de 2016, pela editora Intrínseca
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