Começando um novo tipo de postagens que me comprometo a toda semana dar prosseguimento, ou seja, todas as segundas colocarei um novo conto por aqui. Para os apreciadores de histórias curtas e também como forma de indicar um livro de contos para os que gostam ou aos que desejam se aventurar nesse gênero. Vamos lá?
O que a lua traz consigo
- H. P. Lovecraft
ODEIO A LUA — tenho-lhe horror — pois às vezes, quando ilumina cenas
familiares e queridas, transforma-as em coisas estranhas e odiosas.
Foi durante o verão espectral que a lua brilhou no velho jardim por onde eu
errava; o verão espectral de flores narcóticas e úmidos mares de folhagens que
evocam sonhos extravagantes e multicoloridos. E enquanto eu caminhava pelo
raso córrego cristalino percebi extraordinárias ondulações rematadas por uma luz
amarela, como se aquelas águas plácidas fossem arrastadas por correntezas
irresistíveis em direção a estranhos oceanos para além deste mundo. Silentes e
suaves, frescas e fúnebres, as águas amaldiçoadas pela lua corriam a um destino
ignorado; enquanto, dos caramanchões à margem, flores brancas de lótus
desprendiam-se uma a uma no vento opiáceo da noite e caíam desesperadas na
correnteza, rodopiando em um torvelinho horrível por sob o arco da ponte
entalhada e olhando para trás com a resignação sinistra de serenos rostos mortos.
E enquanto eu corria ao longo da margem, esmagando flores adormecidas com
meus pés relapsos e cada vez mais desvairado pelo medo de coisas ignotas e pela
atração exercida pelos rostos mortos, percebi que o jardim não tinha fim ao luar;
pois onde durante o dia havia muros, descortinavam-se novos panoramas de
árvores e estradas, flores e arbustos, ídolos de pedra e pagodes, e curvas do
regato iluminado para além das margens verdejantes e sob grotescas pontes de
pedra. E os lábios daqueles rostos mortos de lótus faziam súplicas tristes e pediam
que eu os seguisse, mas não parei de andar até que o córrego se transformasse
em rio e desaguasse, em meio a pântanos de juncos balouçantes e praias de areia
refulgente, no litoral de um vasto mar sem nome.
Neste mar a lua odiosa brilhava, e acima das ondas silentes estranhas fragrâncias
pairavam. E lá, quando vi os rostos de lótus desaparecerem, anseei por redes
para que eu pudesse capturá-los e deles aprender os segredos que a lua havia
confiado à noite. Mas quando a lua moveu-se em direção ao Ocidente e a maré
estagnada refluiu para longe da orla tétrica, pude ver sob aquela luz os antigos
coruchéus que as ondas quase revelavam e colunas brancas radiantes com
festões de algas verdes. E, sabendo que todos os mortos estavam congregados
naquele lugar submerso, estremeci e não quis mais falar com os rostos de lótus.
Contudo, ao ver um condor negro ao largo descer do firmamento para descansar
em um enorme recife, senti vontade de interrogá-lo e perguntar sobre os que
conheci ainda em vida. Era o que eu teria perguntado se a distância que nos
separava não fora tão vasta, mas o pássaro estava demasiado longe e sequer
pude vê-lo quando se aproximou do gigantesco recife.
Então observei a maré vazar à luz da lua que aos poucos baixava, e vi os
coruchéus brilhando, as torres e os telhados da gotejante cidade morta. E
enquanto eu observava, minha narinas tentavam bloquear a pestilência de todos
os mortos do mundo; pois, em verdade, naquele lugar ignorado e esquecido
reuniam-se todas as carnes dos cemitérios para que os túrgidos vermes marinhos
desfrutassem e devorassem o banquete.
Impiedosa, a lua pairava logo acima desses horrores, mas os vermes túrgidos não
precisam da lua para se alimentar. E enquanto eu observava as ondulações que
denunciavam a agitação dos vermes lá embaixo, pressenti um novo calafrio
vindo de longe, do lugar para onde o condor voara, como se a minha carne
houvesse sentido o horror antes que meus olhos o vissem.
Tampouco a minha carne estremecera sem motivo, pois quando ergui os olhos
percebi que a maré estava muito baixa, deixando à mostra boa parte do enorme
recife cujo contorno eu já avistara. E quando vi que o recife era a negra coroa
basáltica de um horripilante ícone cuja fronte monstruosa surgia em meio aos
baços raios do luar e cujos temíveis cascos deviam tocar o lodo fétido a
quilômetros de profundidade, gritei e gritei com medo de que aquele rosto
emergisse das águas, e de que os olhos submersos avistassem-me depois que a
maligna e traiçoeira lua amarela desaparecesse.
E para escapar a essa coisa medonha, atirei-me sem hesitar nas águas pútridas
onde, entre muros cobertos de algas e ruas submersas, os túrgidos vermes
marinhos devoram os mortos do mundo.
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