quinta-feira, 2 de junho de 2016

Segunda Conto #1 - O que a lua traz consigo - H. P. Lovecraft

Começando um novo tipo de postagens que me comprometo a toda semana dar prosseguimento, ou seja, todas as segundas colocarei um novo conto por aqui. Para os apreciadores de histórias curtas e também como forma de indicar um livro de contos para os que gostam ou aos que desejam se aventurar nesse gênero. Vamos lá? 


O que a lua traz consigo 
- H. P. Lovecraft


ODEIO A LUA — tenho-lhe horror — pois às vezes, quando ilumina cenas familiares e queridas, transforma-as em coisas estranhas e odiosas.



Foi durante o verão espectral que a lua brilhou no velho jardim por onde eu errava; o verão espectral de flores narcóticas e úmidos mares de folhagens que evocam sonhos extravagantes e multicoloridos. E enquanto eu caminhava pelo raso córrego cristalino percebi extraordinárias ondulações rematadas por uma luz amarela, como se aquelas águas plácidas fossem arrastadas por correntezas irresistíveis em direção a estranhos oceanos para além deste mundo. Silentes e suaves, frescas e fúnebres, as águas amaldiçoadas pela lua corriam a um destino ignorado; enquanto, dos caramanchões à margem, flores brancas de lótus desprendiam-se uma a uma no vento opiáceo da noite e caíam desesperadas na correnteza, rodopiando em um torvelinho horrível por sob o arco da ponte entalhada e olhando para trás com a resignação sinistra de serenos rostos mortos. 



E enquanto eu corria ao longo da margem, esmagando flores adormecidas com meus pés relapsos e cada vez mais desvairado pelo medo de coisas ignotas e pela atração exercida pelos rostos mortos, percebi que o jardim não tinha fim ao luar; pois onde durante o dia havia muros, descortinavam-se novos panoramas de árvores e estradas, flores e arbustos, ídolos de pedra e pagodes, e curvas do regato iluminado para além das margens verdejantes e sob grotescas pontes de pedra. E os lábios daqueles rostos mortos de lótus faziam súplicas tristes e pediam que eu os seguisse, mas não parei de andar até que o córrego se transformasse em rio e desaguasse, em meio a pântanos de juncos balouçantes e praias de areia refulgente, no litoral de um vasto mar sem nome.



Neste mar a lua odiosa brilhava, e acima das ondas silentes estranhas fragrâncias pairavam. E lá, quando vi os rostos de lótus desaparecerem, anseei por redes para que eu pudesse capturá-los e deles aprender os segredos que a lua havia confiado à noite. Mas quando a lua moveu-se em direção ao Ocidente e a maré estagnada refluiu para longe da orla tétrica, pude ver sob aquela luz os antigos coruchéus que as ondas quase revelavam e colunas brancas radiantes com festões de algas verdes. E, sabendo que todos os mortos estavam congregados naquele lugar submerso, estremeci e não quis mais falar com os rostos de lótus. 



Contudo, ao ver um condor negro ao largo descer do firmamento para descansar em um enorme recife, senti vontade de interrogá-lo e perguntar sobre os que conheci ainda em vida. Era o que eu teria perguntado se a distância que nos separava não fora tão vasta, mas o pássaro estava demasiado longe e sequer pude vê-lo quando se aproximou do gigantesco recife.



Então observei a maré vazar à luz da lua que aos poucos baixava, e vi os coruchéus brilhando, as torres e os telhados da gotejante cidade morta. E enquanto eu observava, minha narinas tentavam bloquear a pestilência de todos os mortos do mundo; pois, em verdade, naquele lugar ignorado e esquecido reuniam-se todas as carnes dos cemitérios para que os túrgidos vermes marinhos desfrutassem e devorassem o banquete.



Impiedosa, a lua pairava logo acima desses horrores, mas os vermes túrgidos não precisam da lua para se alimentar. E enquanto eu observava as ondulações que denunciavam a agitação dos vermes lá embaixo, pressenti um novo calafrio vindo de longe, do lugar para onde o condor voara, como se a minha carne houvesse sentido o horror antes que meus olhos o vissem.



Tampouco a minha carne estremecera sem motivo, pois quando ergui os olhos percebi que a maré estava muito baixa, deixando à mostra boa parte do enorme recife cujo contorno eu já avistara. E quando vi que o recife era a negra coroa basáltica de um horripilante ícone cuja fronte monstruosa surgia em meio aos baços raios do luar e cujos temíveis cascos deviam tocar o lodo fétido a quilômetros de profundidade, gritei e gritei com medo de que aquele rosto emergisse das águas, e de que os olhos submersos avistassem-me depois que a maligna e traiçoeira lua amarela desaparecesse.



E para escapar a essa coisa medonha, atirei-me sem hesitar nas águas pútridas onde, entre muros cobertos de algas e ruas submersas, os túrgidos vermes marinhos devoram os mortos do mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário